As tarifas chegaram. Mas a inflação, não.
A ideia de que tarifas são automaticamente inflacionárias é simples demais para o mundo em que vivemos hoje. A lógica tradicional diz: aumente o custo da importação, o preço sobe, o consumidor paga a conta. Mas num momento em que a economia global já está arrefecendo — inclusive a americana — a reação do consumidor muda. O consumo recua, o volume de importações diminui, e os próprios exportadores se adaptam para não perder mercado. Foi o que vimos, por exemplo, com o Japão, ajustando os preços de veículos exportados para os EUA.
O PPI, índice que mede os preços na porta da fábrica, veio zerado. A expectativa era de alta, mas ele não se moveu. Isso já sinaliza que o impacto inflacionário não está se concretizando. E o mais interessante é entender por quê: os EUA hoje são uma economia centrada em serviços, que puxam mais de 70% do PPI. E são exatamente esses serviços que estão mostrando queda. A manufatura até sofreu algum impacto das tarifas, mas foi insuficiente para contrabalançar a queda no setor de serviços. No fim, o resultado é neutro — ou até deflacionário.
Se você acompanha meu conteúdo, sabe que falo bastante sobre como o sistema eurodólar levou os Estados Unidos a se especializarem em serviços, enquanto exportaram boa parte de sua manufatura para o mundo. O sistema exige déficits comerciais para enviar dólares ao exterior. E com isso, a base industrial foi sendo substituída por setores como finanças, advocacia, medicina, tecnologia. É por isso que o impacto tarifário não é tão direto quanto muitos pensam: ele afeta os bens, mas os bens são uma parte pequena da economia americana.
Trueflation abaixo de 2% e superávit fiscal: o mundo virou de cabeça pra baixo
Enquanto o Fed continua preocupado com inflação, os dados em tempo real mostram outra coisa. O índice Trueflation — que acompanha preços diariamente com muito mais granularidade que o CPI tradicional — está em 1,82%.
E vem caindo desde o início do ano. Mesmo com oscilações em moradia e serviços, não há sinal de pressão inflacionária relevante. Isso torna ainda mais difícil justificar a manutenção de uma política monetária apertada com base em uma inflação que não existe no presente.
Mas talvez o dado mais contraintuitivo do mês tenha sido o resultado fiscal de junho. Pela primeira vez desde 2017, os EUA registraram superávit — e não déficit.
Em parte, isso se deve a um aumento de mais de 300% na arrecadação com tarifas. Em junho de 2024, o déficit foi de 71,5 bilhões. Em junho de 2025, o Tesouro apresentou superávit de 26 bilhões. Só que aqui está o ponto chave: do ponto de vista da mecânica monetária, esse superávit é deflacionário. Todo valor arrecadado em excesso é dinheiro retirado de circulação. Isso funciona como um freio monetário, não como estímulo.
Ou seja, o que deveria ser um fator inflacionário — tarifas — acabou alimentando um mecanismo que destrói liquidez. Isso reforça ainda mais o argumento de que não há, neste momento, um impulso inflacionário genuíno na economia americana. Pelo contrário: a pressão continua sendo desinflacionária. E mesmo que o Fed venha a cortar os juros, o impacto prático será mais psicológico do que efetivo. O mercado já está em máximas históricas — o S&P500, o Bitcoin, todos os ativos de risco estão precificados para um ambiente de corte. O que mais falta estimular?
Tarifas como vilãs? O buraco é mais embaixo
O debate sobre tarifas costuma ser contaminado por paixões políticas. Muitos querem que o efeito seja negativo como uma forma de punir o protecionismo. Mas o que estamos vendo é um cenário muito mais complicado. Sim, as tarifas tornam certos produtos mais caros. Sim, isso afeta cadeias produtivas. Mas quando aplicadas num ambiente onde o consumo já está fraco, o resultado tende a ser um desincentivo adicional à compra — e não uma explosão inflacionária.
A arrecadação com tarifas subiu? Sim. Mas isso apenas evidencia que ainda existe algum consumo. E que o governo conseguiu extrair dólares a mais da economia. Só que isso, repito, não é inflacionário. É o oposto. Tarifas são como impostos: retiram liquidez do sistema. E em um cenário de desaceleração sincronizada — com Europa, Brasil e China também mostrando fraqueza — o efeito agregado das tarifas é muito mais suave do que o esperado.
A economia global está em processo de resfriamento desde 2008. A fragilidade estrutural do sistema monetário internacional se tornou evidente após a crise, e desde então, a dinâmica não se corrigiu. O crescimento é frágil, a produtividade estagnada, a demografia adversa. A tarifa entra nesse cenário não como um gatilho, mas como mais uma camada. E por isso, até agora, o efeito líquido foi… deflacionário.
Talvez isso mude. Talvez o cenário geopolítico, as renegociações comerciais, ou uma eventual recuperação sincronizada alterem essa dinâmica. Mas neste momento, não há como sustentar a narrativa de que os EUA estão sofrendo uma onda inflacionária por causa das tarifas. Os dados simplesmente não confirmam essa hipótese.
Enquanto isso, seguimos observando — atentos ao que os dados revelam de fato, e não ao que gostaríamos que eles revelassem.
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