Apesar da guerra tarifária travada pelos Estados Unidos nos últimos anos, o volume total de exportações da China segue praticamente no mesmo patamar de antes. O que mudou drasticamente não foi o quanto se exporta, mas para onde esses produtos estão sendo enviados.
Enquanto alguns argumentam que a China está redirecionando seus produtos para outros mercados e que os EUA se tornaram dispensáveis, a realidade mostra um movimento mais complexo: muitos desses produtos continuam tendo os Estados Unidos como destino final, mas agora passam por países intermediários — os chamados proxies. É o que conhecemos como transbordo ou transshipment.
E é exatamente esse tipo de operação que tem colocado o Vietnã no centro das atenções. O país virou um dos principais canais indiretos usados por empresas chinesas para driblar tarifas e continuar abastecendo o mercado americano. Não por acaso, o Vietnã foi alvo recente de medidas anunciadas por Donald Trump, e é sobre essa reconfiguração comercial que gira o debate atual.
Transbordo como Estratégia de Sobrevivência
Um dado emblemático: as exportações diretas da China para os EUA caíram 43%, o que representa uma redução de cerca de 15 bilhões de dólares. Ainda assim, as exportações totais da China cresceram 4,8% no mesmo período. Parte disso se explica pelo chamado frontloading, ou seja, um envio antecipado de mercadorias antes da entrada em vigor de tarifas. Mas o movimento mais estrutural vem sendo mesmo o uso de países intermediários.
Especialistas como Robin Brooks têm acompanhado de perto esse padrão, que se intensificou em países como Vietnã, Indonésia, Malásia, Singapura e Tailândia; todos registrando picos de exportações para os Estados Unidos. Brooks inclusive aponta o crescimento dessas exportações como sinal claro de um sistema global que se adapta rapidamente às regras para seguir funcionando. Mesmo com tarifas, o comércio encontra caminhos.
E isso gera fricções. No momento em que produtos passam a circular por rotas mais longas e menos eficientes, os custos logísticos aumentam. Mas essa ineficiência é aceita como um preço a se pagar pela manutenção do acesso aos mercados-alvo. Setores estratégicos seguem protegidos por políticas nacionais, enquanto outros absorvem o impacto.
Estamos falando de um cenário cada vez mais moldado por questões de defesa econômica e interesse nacional. E nesse contexto, o transbordo se tornou uma prática recorrente, porém cada vez mais vigiada.
A Nova Desglobalização e os Microblocos
Esse movimento de adaptação do comércio internacional não significa uma retração da globalização, mas sim uma reorganização. A globalização não está desaparecendo, mas sim se fragmentando.
Estamos entrando numa fase marcada por acordos bilaterais em vez de blocos multilaterais, por cadeias de produção menos eficientes do ponto de vista econômico, mas mais alinhadas a interesses estratégicos. É uma nova globalização que ainda está tomando forma, mas que já começa a ser visível nos dados e nos fluxos comerciais.
Um artigo recente, publicado em 27 de junho, aponta exatamente isso. Ele descreve o cenário atual como uma “expansão divergente” da economia global. A inovação continua — inteligência artificial, novos mercados, avanços tecnológicos — mas já não se apoia mais em um sistema coeso e eficiente de produção. Em vez de terceirizar tudo para um país como a China, as nações estão voltando a investir em parceiros específicos, muitas vezes com base em alinhamentos geopolíticos e não apenas em custos.
https://cepr.org/voxeu/columns/state-globalisation-new-ebook
Trump, Tarifas e a Guerra Comercial 2.0
Diante dessa reorganização, Trump voltou a ameaçar com tarifas, desta vez mirando diretamente os bens que chegam aos EUA via transbordo. Em cartas enviadas a países como Japão e Coreia do Sul, ele deixou claro: a partir de 1º de agosto, produtos que passarem por esse tipo de triangulação poderão sofrer tarifas ainda maiores. O objetivo é forçar governos estrangeiros a sentarem à mesa de negociação.
Essas ameaças somam-se a um ambiente já marcado por incertezas. E o mercado começa a entender que a instabilidade regulatória não é um momento passageiro, mas uma nova constante. Empresas estão, por isso, buscando mais flexibilidade: algumas estão movendo produção diretamente para os Estados Unidos para evitar o risco tarifário de vez; outras seguem adaptando suas cadeias logísticas para estarem prontas diante de mudanças inesperadas.
O Caso Europeu e a Repetição do Padrão
Esse tipo de dinâmica não é exclusivo da Ásia. Robin Brooks também chama atenção para como países europeus vêm burlando sanções à Rússia por meio de terceiros. Mesmo após a guerra da Ucrânia, exportações de países como Alemanha, França, Itália e Grécia para a Rússia continuaram — só que agora passando por Armênia, Quirguistão, Turquia e outros canais. Ninguém quer perder vendas.
Robin Brooks - https://x.com/jurgen_nauditt/status/1942251010186948673
É exatamente o mesmo princípio: quando há um comprador do outro lado, o mercado encontra uma forma de continuar operando, mesmo que isso envolva contornar regras ou assumir riscos reputacionais.
A prática se espelha até no sistema financeiro. Assim como o eurodólar funciona à margem dos sistemas bancários tradicionais, usando paraísos fiscais e estruturas paralelas para gerar crédito, o comércio exterior segue um padrão semelhante. A lógica é clara: se o canal oficial fecha, surgem caminhos alternativos.
Fragmentação Global e o Neofeudalismo Comercial
Essa reorganização da globalização aponta para uma nova configuração, em que o mundo deixa de operar como um sistema único e passa a funcionar por microblocos econômicos e comerciais. É o que alguns têm chamado de “neofeudalismo do século 21”, com microecossistemas que compartilham fluxos preferenciais de produtos e capitais entre aliados estratégicos.
Nesse ambiente, entender os rumos da geopolítica se torna fundamental. Quem serão os aliados de amanhã? Onde estarão os fluxos de capital? Quais cadeias logísticas permanecerão estáveis?
Como disse Michael Every do Rabobank, se você vir fronteiras sendo redesenhadas em 2025, é bem provável que os fluxos de capital e os gráficos de preços também estejam prestes a mudar com muito mais volatilidade.
Esse é o novo mundo que estamos acompanhando de perto. E como sempre, liquidez, política e geografia caminham lado a lado.
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